Marcelo Ferla

O que mais me chamou a atenção no princípio foram as conversas a boca pequena e ao pé do ouvido. Grandes ideias ou pequenas críticas, sempre reservadas, num petit comité deveras anti-shakespeariano: pouco barulho por muito.

Enquanto o diretor encarnava o psicólogo e seus assistentes diretos pescavam intenções, o entorno, uma dezena de profissionais com obrigações diversas seguiam tocando o cotidiano, todo-dia-tudo-sempre-igual, para um resultado sempre diferente.

Vez por outra os longos silêncios eram quebrados por frases corriqueiras como um contraponto na busca de algo que fugisse do trivial. “Nem sempre o gol sai no primeiro tempo, ele também pode vir aos 44 do segundo”, como o belo take que surgiu quase por acaso, da cena que mostra a majestosa sombra de um carro saindo de uma garagem.

Eu comecei a me dar conta a partir daquele involuntário chiaroscuro de Da Vinci o quanto um filme é um organismo vivo que parece que nunca terá um fim e que é capaz de produzir suas próprias cenas. Um dia ele simplesmente deixará de ser rodado. Será um eterno ponto zero?

Voltando pra o começo desta conversa, fui convidado a acompanhar e escrever sobre o primeiro longa-metragem do José Pedro Goulart, Ponto Zero, que ele roteirizou e dirigiu. Propus investir na primeira pessoa e me tornei o mais privilegiado voyeur do incrível work in progress que é um filme, e neste caso ainda mais literal, porque as cenas foram rodadas linearmente, seguindo cada página do roteiro – com alguns acréscimos no calor dos acontecimentos.

Minha janela indiscreta foi ampla, geral e irrestrita. Fui o cara que viu tudo e teve acesso a todos, sem saber para onde esta narrativa iria me levar. Pouquíssima gente que trabalhou em Ponto Zero pôde ler o roteiro, inclusive seus atores. Era tudo um mistério que se resolveria em conta-gotas, embora a chuva que nos acompanhou naqueles dias tenha sido sempre torrencial – mas não necessariamente real.

Percorri longas madrugadas sem saber para onde a história do guri que pega o carro do pai e sai pela madrugada me levaria. Muito mais do que isso, eu não posso contar. É tudo um mistério, como propõe o Zé, e como canta outro Zé, de sobrenome Ramalho: “Mistérios da meia-noite / Que voam longe / Que você nunca / Não sabe nunca / Se vão se ficam / Quem vai quem foi…”